
Parte 1 – Uma Visão Técnica da Proteção Térmica
Por Maria Chies
A crescente adoção de veículos elétricos (VE) e híbridos (VEH) introduz novos desafios em segurança elétrica. Esses veículos utilizam sistemas de potência em tensões perigosas, com presença predominante de corrente contínua (DC) em valores elevados, particularmente em baterias e conversores, o que eleva a complexidade dos perigos associados ao seu uso e manutenção. Embora os riscos de choque elétrico sejam bem documentados, a compreensão e mitigação dos efeitos térmicos ainda estão em fase de amadurecimento técnico e normativo.
E podemos considerar o perigo de arcos elétricos nessas novas tecnologias?
Este mês vamos trazer para você, em dois artigos técnicos exclusivos, uma visão técnica sobre a proteção térmica contra calor e chamas em veículos elétricos e híbridos, abordando aspectos técnicos e normativos, e tendências na proteção de quem trabalha com essas novas tecnologias.
Então siga comigo e boa leitura…
Arquitetura Elétrica em VE e VEH
Quais os pontos críticos a serem analisados nos veículos elétricos e híbridos?
Os sistemas elétricos de VEs operam com tensões que variam entre 400 V e 800 V DC, podendo alcançar mais de 1000 V nos modelos de alto desempenho. As principais fontes de risco térmico incluem:
- Conjuntos ou “packs” de baterias de íons de lítio
- Conversores DC/DC e inversores DC/AC
- Cabos e conectores elétricos
- Componentes de comutação de potência (chaves)
O arco elétrico pode ocorrer durante falhas de isolamento, falhas em contatos, curtos-circuitos ou durante intervenções técnicas inadequadas. A natureza da corrente contínua contribui para a persistência dos arcos elétricos, já que diferentemente da corrente alternada, a ausência de passagem por zero torna a extinção do arco elétrico mais difícil.
Então existe a probabilidade de ocorrência de arcos elétricos em VEs e VEHs?
SIM. Certamente a probabilidade de ocorrência de arcos elétricos existe, tanto nos veículos em si, como nos sistemas de recarga, algo que veremos com mais detalhes em nosso artigo número 2. O fato de termos baterias que não podem ser descarregadas nos circuitos internos, torna o trabalho sob tensão uma realidade imposta pela manutenção de VEs e VEHs.
Cenários de Uso e Manutenção
Durante o uso regular, os riscos são mais baixos devido aos sistemas de segurança dos veículos (intertravamentos, desligamento automático em falhas, etc.). Contudo, durante manutenções e operações técnicas, os seguintes cenários se destacam:
- Desmontagem de packs de baterias
- Testes de continuidade ou isolamento com instrumentos inadequados
- Intervenções em conectores elétricos
- Modificações não autorizadas em circuitos de potência
- Falhas eletromecânicas em componentes críticos
A manutenção deve ser realizada por profissionais capacitados e com protocolos de bloqueio e etiquetagem (LOTO – Lockout/Tagout) para circuitos DC.
Os riscos de arcos elétricos existem neste cenário, mas são considerados de baixa probabilidade. Em contrapartida os riscos de incêndio são uma grande preocupação e ocorrem tanto nas manutenções quanto no uso, e podem ser decorrentes de arcos elétricos, sendo o potencial calorífico dos incêndios de baterias veiculares é uma preocupação constante.
Estudos de energia incidente em Sistemas DC: Um desafio técnico
Os métodos tradicionais de cálculo de energia incidente, como a IEEE 1584, foram historicamente desenvolvidos para sistemas AC. Embora a NFPA 70E (Anexo D) traga métodos de análise em corrente contínua DC Arc Models (D. Doan, M. Capelli-Schellpfeffer), ainda há lacunas importantes como:
- Determinação precisa da distância de trabalho
- Fatores de correção para circuitos DC pulsado
- Modelos matemáticos validados para duração e intensidade do arco em baterias
No Brasil atualmente, com a norma ABNT NBR 17227, é possível utilizar recursos de investigações e artigos científicos, com métodos interativos validados para estabelecimento do estudo de energia incidente em circuitos DC.
Assim, a caracterização térmica do risco em veículos depende muitas vezes de estimativas conservadoras, e acaba recorrendo a tecidos com maior proteção térmica. Mas isso seria realmente correto?
Com uma indústria relativamente recente, é difícil afirmarmos se estamos indo para um caminho correto, mas algumas pesquisas recentes nos apontam alguns detalhes sobre a resposta dos tecidos de proteção térmica em circuitos DC.
Devo utilizar vestimentas mais conservadoras já que o assunto é recente e pouco investigado?
A certificação das Vestimentas de proteção contra arco elétrico segue via de regra a normativa ASTM (ASTM F1506 / ASTM F1959) ou a normativa IEC (IEC 61482-2 / IEC 61482-1-1). É importante ressaltar aqui que a certificação para fogo repentino segue a norma NFPA 2112 (com os ensaios em manequim instrumentado regidos pela ASTM F1930), e no Brasil a certificação segue a ABNT NBR 16623 com os ensaios em manequim instrumentado regidos pela serie ISO 13506-1 e -2.
Entretanto temos sempre que lembrar que “Tecidos e vestimentas para proteção contra efeitos térmicos de arcos elétricos ou mesmo Fogo Repentino não são apropriados para proteção no combate a incêndios”!
A proteção térmica dos tecidos quando sujeitos a arcos elétricos DC tornou-se uma dúvida importante com a crescente utilização das energias renováveis, e isso gerou uma orientação conservadora como medida de segurança, fazendo com que alguns procedimentos em circuitos de corrente contínua, como por exemplo de inversores de potência e mesmo sistemas veiculares, recebessem uma indicação de vestimentas de proteção térmica com valores de ATPV superestimados (> 40 cal/cm²), sobrecarregando também proteções nos olhos, face e cabeça, bem como as mãos.
No caso particular da proteção facial, no entanto, os pesquisadores chamam a atenção para possíveis diferenças nos espectros infravermelhos de cada tipo de arco – AC ou DC – o que poderia alterar significativamente a resposta dos EPIs. Algo que ainda requer maior atenção e estudos científicos mais específicos.
Pesquisas recentes publicadas no IEEE ESW EUA 2025 demonstram que efeitos de avaliação da resistência ao arco elétrico, o ATPV para tecidos de uma camada de diferentes construções têxteis, apresentam resultados muito próximos se ensaiados em corrente alternada ou contínua – uma adaptação do método padronizado internacional (ASTM F1959) com uso de circuitos retificadores trifásicos em laboratório de terceira parte.
Desta forma, com os avanços nas metodologias dos estudos de energia incidente DC, é possível estabelecer um processo adequado de seleção de tecidos de proteção térmica nos cenários de manutenção desses veículos, sem inviabilizar trabalhos pelo excessivo desconforto e perda de tato e mobilidade.
No entanto, temos sempre que levar em conta a Análise de Riscos de cada procedimento, com uma consideração sobre as variabilidades e dinâmicas dos processos que envolvem a probabilidade de ocorrência de arcos elétricos. A tratativa de incêndios deve fazer parte desse processo, mas não devemos confundir os perigos envolvidos e as ações de mitigação e de emergência em cada um dos processos!
Tendências no campo dos VEs VEHs
O aumento da frota de veículos elétricos exige uma abordagem robusta em segurança elétrica. Os riscos de arco em corrente contínua, embora menos documentados, são reais e podem causar lesões térmicas severas. A normatização específica ainda está em evolução, mas os princípios de precaução, uso de EPIs adequados e treinamento técnico especializado são medidas indispensáveis.
Está gostando desse tema? Então fique atento a nossa próxima publicação com a segunda parte de nosso artigo!
Referências
- IEEE Std 1584-2018 – Guide for Performing Arc-Flash Hazard Calculations
- NFPA 70E – Standard for Electrical Safety in the Workplace
- ASTM F1506 – Standard Performance Specification for Flame Resistant Textile Materials for Wearing Apparel for Use by Electrical Workers
- IEC 61482-2:2018 – Live working – Protective clothing against the thermal hazards of an electric arc
- Doan, D. et al. “Modeling DC Arc-Flash Events in Battery Systems”, IEEE Electrical Safety Workshop
- Chiesa, M. et al. “Análise Técnica de Riscos de Arco Elétrico em Corrente Contínua”, Revista de Segurança Elétrica, 2023
- SAE J2929 – Electric and Hybrid Vehicle Battery Systems: Safe Design and Testing
- Brian Shiels et.al. “A comparison of fabric arc ratings and the performance of arc rated clothing exposed to arc flashes generated using ac and dc energy sources”. 2025 IEEE Electrical Safety Workshop – USA.